Costuma se sentir afortunado, e isso por inúmeras razões, uma delas sendo inclusive porque a disposição da sorte como um fator operativo no processo bloqueia uma sequencia causal mais estrita, reducionista e rudimentar, que colocaria no centro do palco noções de competência e excelência, e isso não seria bom para ninguém.
Em particular no que diz respeito à literatura, a fortuna efetivamente lhe sorriu, pois não sabe como seria viver disso. Poderia, claro, ser jornalista e trabalhar com literatura, tem amigos que fazem isso e não vivem debaixo da ponte. Mas sobrevive com risco reduzido, em seu trabalho de professor e pesquisador em uma universidade pública, o que nesse país significa que seu emprego é mais ou menos estável e, embora atravessado por complicações sem conta, umas estruturais e sérias e mil e uma espúrias e risíveis, lhe dá conforto, alguma satisfação, e a oportunidade de se sentir, algo romanescamente – e quem vive sem ficção que atire a primeira pedra – menos vítima da máquina do mundo.
Ou seja: não vive “de literatura”, e de fato não faz a menor idéia do que poderia ser isso. Teme perguntar isso aos autores que conhece, embora já faça anotações sobre o tema há meses, embora deseje escrever a respeito. Profissão: Autor – o que pode ser isso? Inquirido na escola sobre a profissão da mãe, um garotinho responde Minha mãe é autora, ficcionista. O que pode ser isso? Sabe, por relações de maior proximidade, que um determinado Autor vive bem, pelas benesses da família e por um trabalho colateral na mídia; outro tem uma competência muito específica que o torna buscado para trabalhar em campanhas políticas, e dessa operação sazonal tira seu sustento; outra trabalha como tradutora, outro vive perigosamente – todos ganham alguma coisa de direitos autorais. Apesar do desejo de saber, tem vergonha de sair perguntando, e isso porque há um embaraço no negócio de extrair o sustento do literário: é, obviamente, um trabalho, um negócio, mas sua especificidade tem algo de esquivo. Esse componente fugidio não tem a ver, necessariamente, com sua condição de “arte”. Mesmo se visto de maneira mais operacional, como artesania, fruto de empenho sistemático e resultado de prática deliberada, ainda assim a coisa se complica na circulação de papéis, expectativas, performances, valores, o diabo.
O que publica de resenhas no jornal depende de um relacionamento com um grupo pequeno de jornalistas, desde sempre marcado por gentileza e urbanidade: eles o solicitam, ele os solicita, negociam prazos e possibilidades, e assim a coisa vai tipo meio a meio, com ele criando demandas para resenhar livros de autores que já lê e admira e sobre os quais já pesquisou e escreveu e também recebendo demandas para comentar autores que talvez não lesse não fosse o imperativo da resenha. Não tendo de se sustentar com o que recebe por esses trabalhos, o que ganha vira uma espécie de bônus de bom comportamento, um prêmio para o Funcionário do Mês que, via de regra, é vertido na aquisição de outros livros que, por fim, verá que não tem mais tempo para ler. Pois há os textos dos alunos, que tem de ser prioritários, e há os mil textos próprios do restante do ofício – atas, relatórios, projetos, prestações de contas, planos de curso, avaliações, pareceres. Há sua pesquisa, sobre a produção ensaística contemporânea, que lhe consome, tem lhe consumido muito tempo, vai lhe consumir mais tempo ainda; há o projeto de uma biografia de Juan José Saer, ainda em seu embrião, que não deseja que morra no nascedouro. Há mil e um planos, e todos custam leitura, leitura, leitura, e esse é só o começo da conversa.
Lembra de quando estava no mestrado, chegando cedo na biblioteca vazia, cumprimentando as bibliotecárias e se deixando enlevar por uma ou outra leitora compenetrada, gastando horas na leitura de números velhos do NYRB, em um uso quase injustificável do tempo que deveria estar investindo em leituras para a dissertação. Obrigação e diversão, concentração e digressão, maldita economia. Nunca seria um comentador de literatura hoje sem aquelas manhãs, sem aquela lentidão, sem aquele desajuste temporal e procedimental com sua circunstância e com seus colegas que, mais ciosos da própria carreira e talvez melhor orientados, avançavam em linha reta, como demônios.
Lembra, no caos de papéis em cima da mesa, debaixo das mil obrigações de papel, na hora de decidir o que levar para a praia, de um momento de A Mulher do Tenente Francês no qual o narrador diz algo como É isso que costuma acontecer, não estranhe: as pessoas somem de vista, tragadas pelas sombras das coisas mais próximas. Lembra do vaticínio de ML no decálogo que ele vem elaborando com óbvio gosto há tempos, publicando e republicando, como se fosse um manifesto: não gosta do tom délfico, da empáfia (“Dez mandamentos? Caralho…”), da unilateralidade do negócio produzido em torno da anomalia (o caso Parker). Mas, independente de tudo que é da ordem do gosto, lê verdades ali, e lê com particular melancolia o momento em que Laub diz que
Você lerá só por obrigação. Nunca mais irá atrás de um livro indicado por um amigo. Nunca mais fechará um livro com a sensação de que, para o bem ou para o mal, e isso é quase regra para leitores mais experientes, não há o que dizer sobre ele.
Há algo aí, há um aprendizado aí – como também há no entusiasmo do AdMan quando começou a receber livros “espontaneamente“, que começaram a brotar em sua caixa de correio sem demanda, indicativo de um reposicionamento no campo, sem dúvida marcador de prestígio e de progresso. Há vaidade, há a sensação de reconhecimento e recompensa – há ganho sim. Mas o que fazer com o rapaz que lia por horas a fio aqueles exemplares velhos do NYRB e o Folhetim da Folha e pensava que queria aquilo pra si? O que fazer com o rapaz que, fumando muito, se preocupava com dinheiro para mais cigarros assim que acabasse o maço e, com ele, o livro de Perec que seu amigo lhe emprestou? Uns jornais velhos e amarelados, o cinzeiro cheio, uma poltrona herdada e perdida, e uma pessoa que não existe mais e, claro, não tem mais nada a dizer.
Creio que este foi seu melhor texto. Para mim, que fez outras opções na vida, um tapa de luva e uma imensa inveja. Somos que podemos ser, não é verdade?
Que dizer, Camarada? Agradeço o elogio, e agradeço tb seu desejo de escrever sobre literatura, que lhe fez fazer seu lamentavelmente finado blog, que me animou a começar a fazer um tb.
Em breve (Out) estarei em BH e estaremos mais uma vez no Redentor bebendo chopes, conversando fiado e nos atrasando para encontros já marcados de antemão. 🙂
Felizes os que levam a vida (e a literatura) mais pelo dispêndio do que pela acumulação.
“Meu negócio é ga$tar”, disse César, fazendo até o Raúl rir.
🙂
Sr. Moderador, eu o invejo com todas as forças.
Camarada Diego, vc me elogia – diz que me inveja, nós dois invejamos DeLillo, amigo é pra essas coisas. 🙂
Palavras tão desejadas da vida
Boas palavras
Mais umas sílabas aí e virava um haicai, João. Acredite.
Muito bom esse seu texto, Antônio. Realmente, como alguém mais acima observou, é um dos mais cintilantes entre os já postados. Abraço. João Paulo dos Santos
Obrigado, JP – fico feliz que tanta gente tenha gostado desse post, foi o recorde de acessos no blog até agora.
Escreve um post sobre os livros que tu mais teve exemplares, ao longo da vida.
Ih, Sobrinho, acho que nem tem muito o que dizer – mas nunca pensei nisso, então vale post sim 🙂
Esse é o tipo do texto que a gente agradece o autor por ter escrito.
(Agora, vem cá, e essa biografia do Saer, diz pra mim que vai sair.)