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Don Draper, John Cheever

A extensão em que se pode ter empatia com Don Draper é enorme: o homem é uma fantasia de sucesso completa, habita um momento histórico e um lugar invejáveis, e celebra um exercício radical do projeto do self-made man: é carismático, astuto e tranquilo, uma fortaleza que se fez com nada exceto habilidade, engenho e arte. Mas, à medida que a narrativa avança, uma tintura começa a aparecer e se espalhar – e você não se surpreende, mas o fato é que é uma tragédia. Há momentos de leveza, mas são eventuais, parênteses. O destino do herói, uma vez que é destino, não admite redescrição, e a contingência não é capaz de nada a não ser de uma folga cômica, um alívio que permite a projeção, em uma outra volta do parafuso, da narrativa para seu final.

Ou não? Observe, por exemplo, o momento em que Draper, na Califórnia, pode se redescrever mais uma vez, sumir, desaparecer: toma um banho de mar, sem camisa, com uma calça cáqui arregaçada, um quarentão em uma praia solitária na costa oeste nos anos sessenta. O que se pensa em um momento assim? O que se deseja? Ou, ainda, no episódio em que ele aparece nadando na piscina, ruas de Manhattan fervilhando no início do verão, e ele escrevendo em seu diário, de novo com uma calça cáqui, os pés descalços: o que é isso? Reforma moral, incipit vita nova?

Você lê os diários de Cheever, mais ou menos dessa época, início dos anos sessenta, ele já com quase cinquenta anos dizendo coisas como A estranheza do tempo, a estranheza da personalidade. Às voltas consigo mesmo, perplexo com seu próprio espectro de ambiguidades e envolvido em um trabalho que, em certa medida, depende do auto-exame para ter sucesso, Cheever parece o tempo todo buscar para si o estado em que, sem nome e nu mais uma vez, ninguém sabe quem ou o que ele é, e ele pode ser qualquer coisa, e acreditar por um momento que a satisfação desse novo desejo de ser será, dessa vez, enfim, algo sem custo, sem dor, sem falência. Você escreve em seu diário sobre isso, acorda cedo para nadar, e se esgota pensando em coisas dessa família: razões, projetos, impotências, importâncias. E isso, embora pareça a posteriori apenas mais uma encarnação da ingenuidade, ou um exercício peculiar de ócio e lassidão, é também a manifestação de uma urgência que talvez seja inevitável, uma consciência da falência final que não se deixa asfixiar pelas mil e umas forças do Não, do Você não é isso, do Você sempre vai ser assim. E então você nada um pouco mais e lembra de Cheever se perguntando, em uma página de 1962,

O que é afinal que eu quero: um quarto mobiliado, um umbral de porta, ou uma rua, o vento soprando?  Depender de coisas e pessoas, estar sujeito às circunstâncias, desejar avidamente evitar a miséria particular da independência. Conhecer as diferenças do que se sente nesse momento da vida, nadar na praia e subitamente perceber que tudo passou de dor para prazer, acreditar que ainda há trabalho a fazer, algo a fazer.

  1. Marcus Martins

    Lindo post. Podia incluir uma tag Roland Barthes ou até Dante (cf. Vita Nuova).

    • Vc sabe que eu gosto quando vc gosta – e aceite o post como um minipresente de aniversário 🙂

      Boa ideia a das tags – a do Barthes eu pensei mas terminei deixando de lado: a ideia inicial era fazer um post tipo “a piscina como punctum”. Mas, como sabemos, a escritura é o que acontece enquanto vc está escrevendo outras coisas. 🙂

    • AM

      Obrigado, Diego: vc como sempre lendo e, como sempre, generoso com o que lê. 🙂

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