Em meus anos na loja de discos, dois clientes foram de fundamental importância em minha formação. O fizeram inadvertidamente: estavam apenas fazendo o que fariam de qualquer jeito, mesmo se eu não estivesse lá: fui só uma casualidade, duvido que lembrem de mim.
Um deles, cujo nome esqueci, era um cara de uns trinta anos, rasta, só usava roupa afro, ganja, etc. Não sei exatamente o que ele fazia da vida, mas suponho que trabalhasse em algo na área cultural na região do Pelourinho: talvez eu tenha ouvido algo e esqueci que ouvi, e lembro hoje da impressão de ter ouvido. Era um sujeito abominável, arrogante e sempre disponível para humilhar e espezinhar; também era um adorador de si mesmo: falando de como ele era X, como ele fez Y, quando ele comprou Z. Suas aquisições na loja – sistemáticas, obsessivas, frequentes demais: era um maníaco, que obviamente comprava mais do que podia ouvir – consistiam sempre, e exclusivamente, de reggae, dub e ska. Foi por causa desse cara que ouvi pela primeira vez Alton Ellis, King Tubby, The Upsetters. Coisas boas, o que talvez sirva como mais uma evidência de que se pode encontrar uma pérola mesmo no maior monte de bosta.
O outro, o nome também esqueci – mas lembro do sobrenome do apelido dele: era “Seco”, isso por um hábito que ele tinha. Esse era um cara de outra cepa: tinha mais de trinta, talvez morasse ainda com a mãe, e tinha um jeito duro, anguloso, vincado – o rosto lembrava um pouco a matriz de onde saiu o rosto de Pasolini. Estava sempre com uma roupa que parecia dizer que ele tinha deixado o paletó na cadeira, roupas sociais, sempre meio gastas. Esse era gerente de uma loja de móveis na região, lembro de passar na porta e ver ele trabalhando lá, atendendo uma pessoa, conversando com os outros caras da loja. Ele falava de outros assuntos: futebol, mulher, bebida, loteria. Ao contrário do Rasta, que parecia não ter problemas de grana, esse cara parecia duro. Parecia labutar, se privar pra comprar os discos que ele comprava – que eram todos de jazz – só jazz. Esse cara tinha o hábito de dizer coisas como Ouça esse solo. Aí, velho. Scott LaFaro. Porra. SECO. Seco, porra. – com ênfase no seco, donde o apelido.
Tinha muita inveja desses caras. Mesmo achando o Rasta detestável, era um cara que sabia o que queria – que não sofria de minha dispersão, de minha inconsistência, eu que queria ouvir tudo. E com o outro eu ainda tinha uma certa empatia – ele tinha uma coisa melancólica e trágica, e eu sabia que tinha coisa a fazer nesse departamento, da melancolia e da tragédia; essa parte, aliás, deu bem certo pra mim. Vinte anos depois eu, que nunca fui nada pra esses caras, estou aqui me estapeando com um monte de coisas contraditórias que me fazem querer escrever sobre esse período, sobre essa experiência, sobre esses personagens.
Daqui a 10 anos eu escrevo um texto sobre como você e o pixel-man foram de fundamental importância em minha formação.
abraço. vlw
Diego, bondade sua. Mas, agora ou daqui a dez anos, orgulho meu. 🙂
O Diego robou minhas palavras… ( – pixel-man)
Juan, assim eu fico sem graça. Mas, com graça, te agradeço. 🙂