comentários 17

O fim do livro de Maurício Raposo

Como em quase qualquer coisa, há uma certa ambiguidade na ocasião do fim da leitura. Alguns livros se permitem o abandono, e com isso o fim da leitura parece uma coisa conquistada, um objeto adicionado a seus pertences. Outros repudiam qualquer sensação de conquista: uma vez finda a leitura, o que continua com você é a perda. Você perdeu, o livro não está mais com você, aquela companhia se foi, e você vai continuar sem ela – e com a sensação da perda.

Assim, você se vê numa noite de quinta-feira, perdido em sua própria casa, pois seu livro terminou: você estava lendo sobre Henry James, algo que tem uma aura toda particular para você: conhecer, ler, usar Henry James é um indicativo de que você se afastou muito da pessoa que era quando saiu de casa, pois você tem uma idéia meio demodê de formação que está indissociavelmente ligada a Henry James e outros luxos afins. Então você passou os últimos dias, uma semana difícil, uma semana hostil, enfiando essa leitura de uma “biografia romanceada” de James nos hiatos entre as tarefas. A denominação é cretina: o livro é ficção: é bonito e bom, e é ficção. Você pensa E daí que flerte com supostos acontecimentos documentados? Quem inventa e não faz isso que atire a primeira pedra. Nossa épica, mesmo que se prove fudida e gasta, é essa: uma invenção vampira, uma criação dependente. Não é secundária, não é necessariamente derivativa – mas por mais que se esforce, e tem se esforçado, não abandona sua amante, que é também sua nêmesis, suas vias de fato.

Está claro que, se você está pensando essas coisas por volta de uma e meia da manhã, sua noite está em alguma medida comprometida e, como um estranho em sua própria casa, você se demora diante da proporcionada desordem das estantes, quer saber o que vem a seguir, quem ocupará o lugar vago, quem virá resolver alguma coisa agora que você terminou de ler The Master, agora que você não sabe mais o que ler, ainda. Você se dirige ao setor Henry James: será a hora de reler algum desses contos? Reler What Maisie knew? Coisas de crítica e comentário: Os prefácios, com o prefácio aos prefácios escrito pelo Marcelo Pen? O capítulo de Eakin sobre os textos biográficos de James? O primeiro volume da biografia de Edel? Saer escreveu um bom prefácio para “The lesson of the Master” – onde está isso? É titubeio, e passa tempo, mas é tudo vão, você sabe: essa noite, essa solidão, é isso que você vai ter.

Então você encontra, enfiado na estante acima dos livros, entre alguns pocket books largados e amarelíssimos, quase impossíveis de se ler agora, e nem são tão velhos assim – The turn of the screw, The Aspern Papers, um Conrad, todos comprados em um balaio que tinha perto do restaurante da UFMG – você encontra uma moldurinha, um porta-retratos barato, com uma foto dos irmãos James, os dois já bem coroas, no jardim da casa de Henry em Rye. Essa foto, que você carrega há mais dez anos, foi parar na moldura como um presente de Natal e de despedida para um amigo, um presente que nunca foi enviado: a legenda, que dizia originalmente William and Henry James, Lamb House, 1900, está riscada e embaixo, escrito à mão, está agora Antonio Marcos Pereira e Maurício Raposo, Belo Horizonte, 2001. A consequência óbvia de encontrar com um objeto desses em tais condições é ponderar vagamente sobre amizade, perda, erro – e, também, claro, sobre a força pálida de alegrias passadas, o prazer de colocar as mãos no bolso do agasalho em um dia frio, o vazio todo particular da espera, a casualidade apropriada da mão no ombro do amigo, do irmão, do cúmplice eletivo, seu abraço.

  1. Marcelo Rota

    fiquei com vontade de ler h james agora. vou ver o q tenho aqui.

    • E o que achou? Lembrei de vc me contando a história de The Aspern Papers e prevendo que eu talvez gostasse – naquela época eu ainda era capaz de falar contra qualquer coisa do séc XIX (uma coisa boa da ignorância é que ela é como uma doença que, às vezes, passa).

  2. Marcelo Rota

    Livro com trama, uma que te envolva, dá mesmo sensação de perda ao final da leitura. Tenho sentido isso com os livros do delegado Espinoza, aqueles do Garcia-Roza. E também senti com O Cortiço, que li recentemente. Agora estou no Avalovara, que promete ser como escalar o K-2 ou percorrer o Amazonas, dos Andes até Marajó.

    • Nem tem tanta trama assim o The Master – a natureza da perda é outra, é o fim da companhia.

      Eu acho ruins esses livros do Garcia-Roza – tipo, P D James é melhor. Bem melhor.

      E o Avalovara é mesmo uma pedreira, cheio de irregularidades, e talvez falhe na pretensão – mas é uma pretensão sui generis entre nós, de um autor que não deixou legado, não fez descendentes nem tradição alguma. Agora, o livro de OL ao qual eu ainda retorno, o que acho bom mesmo é o A Rainha dos Cárceres da Grécia. Quem sabe vc não vai lá?

    • Obrigado, Pixel-Man. 🙂 Estava pensando em reproduzir e comentar aqui a resposta que dei pra questão que vc fez pra mim no formspring, sobre críticos brasileiros – talvez valha, a questão foi ótima.

      E a foto é o bicho mesmo.

    • Não, vou perseverar: o plano é ser consistente com isso até primeiro de maio do ano que vem – isso será tb um marco pro final de meu trabalho na tutoria do Pet aqui do Instituto. Daí vou ver o que dá pra tirar daqui – estou, como vc vê, indo na contracorrente do que fez o Idelber Avelar (que parou seu excelente blog pra escrever um livro) e tentando usar como exemplos o Michael Berubé (que tirou dois livros do que começou a escrever no blog) e o cara cujo blog venho elogiando aqui, o do ads without products (ele deseja permanecer anônimo, mas a gente tem trocado umas figurinhas por email).

      E fico feliz que vc esteja gostando, Diego: vc sempre foi um entusiasta do velho Ozu. 🙂

  3. Marcus

    parece que a coisa pegou de novo e melhor, sinto continuidade e desenvolvimento como não sentia a muito tempo. rejoice.

    • Obrigado, Ruperino: it’s indeed gathering momentum. Vou tentar fazer um post com um efeito tipo o do final de “Romantic Sores”, do Kevin Drumm – dedicated to you. 🙂

  4. Pingback: Blogologia – 1 « ensaio

  5. Célio Ricardo Raposo

    MEU CARO AMIGO, TENHO GRANDE CURIOSIDADE SOBRE ESTE ASSUNTO UMA VEZ QUE ESTE,SITA O NOME DE MEU BISAVO,AGORA ESTE “LIVRO DE MAURICIO RAPOSO” É REAL? CONTA HISTORIA REAL ? SE SIM ME CONTE COMO COMPRO UM PARA MIM, GRATO…

    • Mauricio Raposo

      Oi, amigo Raposo,

      eu sou o Raposo referido no post. Mas não tenho livro nenhum. Quando tiver, te mando uma cópia.

  6. Célio Ricardo Raposo

    A sim! espero ansiosamente pela copia1
    Eu gostaria de saber, (ja que vi que o senhor tem conteudo de estudo) se o senhor tem conhecimento sobre os raposo no brasil ou em portugal, mais especificamente os “Mauricio Raposo” meu Bisavo chamavasse Manoel Mauricio Raposo , se não tiver sou granto mesmo assim pela sua atençao

  7. Lembrei do Sallinger; do Catcher in the rye. daquela coisa que o Caufield fala: da necessidade dele de, ao acabar de ler o livro, ficar com vontade de conhecer a pessoa, de te-la como amiga. Seria uma forma dele lidar com isso, com essa perda.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s