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Ignorância, Chekhov

Amanhã quem sabe resolva o enigma dessa frase de Chekhov que me assombrou o dia inteiro hoje, que na verdade desde anteontem está em minha cabeça:  Nada mais em seu coração a não ser as lembranças de seus dias de escola.

O que é isso?, pensei. Não estou particularmente voltado nostalgicamente para meus dias de escola – de fato, eles ainda não acabaram, eles ainda são meus dias, vivo na escola, trabalho com isso. Além disso, não tenho certeza se a frase é de Chekhov mesmo: não sei se é alguma frase recolhida por um comentarista de Chekhov que li; não sei se é alguma frase que anotei em um caderno, pensando em usar em um texto sobre ensino, educação, memória, etc – não sei nada disso. Mas a frase está aí, do jeito que esteve comigo esses dias, o que implica que sei alguma coisa. Mas o que é que eu sei?

Eis então um problema: naquele período da vida em que tais coisas acontecem, você se deixa capturar por algo muito volátil, muito impreciso, mas que lhe parece certo, bonito, firme, bom. Então você vai adiante, e escolhe um trabalho que lhe aproxime disso, não é mesmo? Muito coerente e correto, do mesmo jeito que, se você gosta de madeira, vai ser carpinteiro: há uma passagem rápida aí que tem a graça estúpida da linha reta, e isso lhe captura também, parece fazer sentido, e você está no período da vida em que esse sintagmazinho, “fazer sentido”, lhe faz fazer um monte de coisas, pois você crê que é bom que você seja portador disso: é melhor fazer sentido que não fazer sentido, dessa axiologia você não abre mão, ela lhe sustenta, e lá vai você, e estuda anos, e se torna um professor.

Ora, há aí um equívoco que é próprio da matriz que origina toda a rota, todo o circuito: é da mesma natureza do erro de julgamento que lhe leva a supor mundos e fundos a respeito de uma mulher entrevista à noite, numa daquelas situações esquivas em que você se envolvia, e a conferir-lhe atributos auspiciosos e generosos que, depois você vai constatar, estão muito distantes do referente. Pois ao se tornar professor, e escolher trabalhar de um jeito que lhe permita estar perto do Saber e suas Instituições – livros; bibliotecas; leituras solitárias, leituras com outros, leituras para outros; o encontro com personagens admiráveis e exuberantes, constituídos de elementos magníficos e misteriosos; as conversações intempestivas mas inesquecíveis, capazes de mudar o roteiro que você está escrevendo para si mesmo, capazes de desarrumar seu pacote de categorias e critérios – o que lhe cabe será também trabalhar cotidianamente no cenário da Ignorância, da Burrice, e eventualmente da Estupidez. Isto também será seu palco, sua matéria-prima, sua justificativa.

E enquanto me pergunto isso, enquanto me perguntava, hoje de manhã, levando minha cachorra para passear, sobre o operariado brasileiro, as eleições que batem à porta, o que é “progresso social”, Chekhov continua desaparecendo de minha memória: aparecendo sem ser chamado, e contando para mim apenas metade de sua presença nessa lembrança sem endereço fixo, essa frase solta, presa comigo desde o sábado, essa foto formidável na qual Chekhov lê para seus atores: lê, para que essa leitura se torne uma coisa, essa foto, essa frase.

  1. diego

    Me um abraço que eu também sou professor, e pelos mesmos motivos.

      • diego

        deusnoslivre [2]

        Há um filme em que o cara diz algo assim:
        Ninguém liga p/ os professores, nem o professores ligam p/ os professores!

        ( é a mais pura verdade)

  2. Marcus

    Vou dormir, eu e meu sintagmazinho. lml

    Na biografia do Beckett tem umas fotinhas lindas, mas hoje já me basta essa:

    X-A-N-D-U comanda!

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