1. A primeira vez que li Paul Bowles foi na biblioteca: eu passava muito tempo lá, às vezes tentando estudar, mas na maioria das vezes só explorando, e foi assim que encontrei o livro na estante. Achei curioso, não sabia nada sobre o autor, mas vi que tinha uma introdução do Gore Vidal – desse eu já tinha ouvido falar. Li a introdução, que me deixou ainda mais interessado – mencionava, claro, o Marrocos, e o caráter escandaloso de algumas narrativas. E por isso, por causa de minha necessidade de negligenciar minhas obrigações, matar o tempo e me esquecer de mim mesmo, de uma introdução de Gore Vidal, e de meu interesse por histórias escandalosas, comecei a ler Bowles – lá se vão vinte anos.
2. Quando eu estava fazendo o doutorado, volta e meia acalentava a idéia de usar a história de “Um episódio distante” como uma espécie de pano de fundo alegórico para o que eu pretendia discutir na tese: lembro de ficar sentado em uma poltrona velha que eu tinha herdado do espólio da mãe de um professor – lembro que li Vida: Modo de Usar nessa poltrona – até tarde, com uma prancheta na mão e um caderno, rabiscando idéias em torno disso, um cinzeiro que eu tinha apoiado no braço da poltrona, um suéter gasto que eu sempre usava dentro de casa.
O conto, como sabemos, é apenas um momento em uma matriz que Bowles perseguiu e reiterou muitas vezes, e fala de um linguista que perde a língua e a razão em uma aventura oriental. Eu achava que isso dizia muito, que teria muito a dizer com isso. Não tinha, não tive, nem tenho: tudo que essa história tem a me dizer já foi dito, e foi dito pelo Autor e por seus personagens, dito para mim com todas as letras desde a primeira vez que a história foi lida, numa biblioteca, em Salvador, em 1990. Nenhuma alegoria, nenhuma lição, nada a dizer: já devo ter lido essa história umas dez vezes, e a reli há dois ou três dias, no dia em que escrevi outro post sobre Bowles.
3. Durante muito tempo não soube qual era a cara de Bowles, até que um dia encontrei uma foto: ele está com a mulher, Jane, em um barco, ou coisa do gênero: a cena é muito bonita e, ao mesmo tempo, discreta, doméstica. Vemos o assanho que a embarcação provoca na água, no lado esquerdo da foto, o lado pro qual eles estão olhando; o sol está na frente do rosto de ambos; o espaço à direita é só a quietude opressora do mar aberto, só água até o horizonte. Nenhum deles olha para a câmera, Paul está sem camisa; ninguém está exatamente sorrindo, mas é fácil ficar com a impressão de que o sorriso está por perto, e que isso é bom.
A essa altura eu já tinha lido que Bowles chegou efetivamente a adquirir – comprar, possuir, ter – a ilha de Taprobana com a grana que ganhou por causa do sucesso editorial de O céu que nos protege. Invejei muito isso. Que maravilha deve ser, pensava, poder realizar tanto, ser tão premiado por ter escrito um livro. Imaginava um lugar magnífico, senhorial e um pouco descascado – mas lindo, sempre lindo, com uma beleza abrupta e enigmática só amaciada pela umidade insistente dos trópicos, e ainda com uma população nativa imprecisa, interessante, ritualística. Com tudo isso, imaginei que essa foto retratava um momento da vida do casal nessa ilha – que os dois estavam ali celebrando sossegados e satisfeitos a Sorte Grande, a Grande Oportunidade que deve ser amar e ser amado e ter uma ilha inteira só para viver e conversar de literatura vida afora. Depois, lendo biografias de Bowles, descobri que estava enganado – mas que fazer? Essa foto é linda.