É o Dia do Trabalho de 2011. Nada melhor do que recuperar um trecho de uma das autobiografias de Schklovsky, Zoo, or letters not about love.
Escritas e publicadas em Berlin no início da década de 20, essas cartas forjam um romance epistolar sui generis. Há um romance entre o autor das cartas e “Alya”, a destinatária, isso parece claro – mas, na verdade, é ambíguo, e sua maior clareza está em perdurar no fio da navalha, amor sem dizer o próprio nome jamais, amor que se infere e se toma por certo, na exclusão de outras possibilidades, que parecem candidaturas menores no espectro das emoções. O livro teima em refratar toda certeza em seu vórtice de autoreferencialidade; o narrador, que está em Berlin, é fustigado por mil senões. Volta e meia, retorna sobre seu texto, desdiz, entorta o que disse em uma carta anterior, ou ficcionaliza algo que já havíamos tomado por certo como fato – estamos, é sabido, nas mãos de um admirador de Sterne, que compreende o Romance como teimosia disciplinada do artifício em luta contra o empenho seguro da linha reta, estamos na região em que sempre podemos nos dar conta de que não sabemos: é essa Berlin de imigrantes russos, que conhecemos em Nabokov, um mundo no qual Benjamin passeia também.
Numa carta datada justamente de Primeiro de Maio de 1921, o narrador inclui um panfleto: na verdade, inferimos isso, uma vez que ele menciona ter ido a uma reunião e, depois da despedida habitual das cartas (“Seu, etc”), aparece um asterisco no meio da página: em uma tipografia diferente, com letras chapadas e maiores, lemos:
Primeiro de Maio.
O Camarada Trabalha – pois, apesar de ser domingo, a Revolução urge, e não há hora que não seja apropriada para combater a Vilania.
É monstruoso que a irracionalidade tome conta do Trabalho, e que a competição com seu Irmão Trabalhador seja a marca maior do endereçamento laboral do Camarada.
É vil que o Trabalho construtivo, salubre e bom do Camarada se dissipe tão facilmente na volatilidade, e que seja apropriado pela mão mesquinha e sistemática do Controlador Burocrata que, com sua pena seca, pretende rescindir o Camarada da Memória, da História, da Vida.
O Camarada sabe que seu Inimigo é, também, seu Irmão – sabe e sofre com isso, pois por mais bruto que tenha sido o triturador, a Revolução será feita também com o Coração, ou não será.
O Camarada sabe, ainda, que seu Inimigo é, também, ele mesmo, o próprio Camarada – quando fraqueja e se dissipa, quando se distrai ou esquece, quando se perde da Alegria e do Amor e abraça a Grande Melancolia de Existir ao invés.
Fico estupefato com essas palavras, dirigidas a mim noventa anos depois de sua fatura como se fossem o murmúrio de um amigo que, ao abraça-lo, diz em seu ouvido exatamente o que você precisa ouvir, a indenização própria e justa para toda sensação de falência, toda vã consumição de tempo, de vida, de alegria e de amor. Ao trabalho, pois.
Há um Schklovsky que só aparece aqui. Um Schklovsky que parece só ter sido lido por você.
Sobrinho, mas não é isso que o Crítico faz sempre? Inventa um Autor para uso próprio – às vezes, com sorte, calha de servir pra outros também, e pra usos imprevistos tanto pelo Autor quanto pelo Crítico? Benjamin sobre Baudelaire, Calasso sobre Benjamin, e a vida continua. 🙂
E o burocrata capitalista foi substituído pelo cruel burocrata comunista, e o trabalhador continuou sendo esmagado na ditadura do proletariado.