comentário 0

Já faz alguns meses que ele vem estudando anotações: entrou numas de que há algo de interessante aí, nesse tema, a anotação. Menor que isso, só a ideia, o embrião mais absoluto, desmaterializado e impenetrável que há. Na anotação há alguma coisa sobre a abertura do pensamento para sua incidência: ao se esfarelar na página pela primeira vez, a inteligência ainda vem atracada com as gosmas atávicas do nascedouro, e sem elas ele crê que nada de interessante haveria, nenhum pensamento, nenhuma inteligência na escrita, só casuística e vaidade.

Essa torção é bastante óbvia, pois passou a vida escrevendo anotações, seus caderninhos, sua grafomania. Assim, agora que faz quarenta anos começa a se ocupar dos cadernos alheios, das anotações alheias, e de uma contemplação de algo que, por incapacidade de forjar um termo melhor, sai dizendo que é “método”, “metodologia”, como em frases tipo Tô estudando o método de leitura de Barthes, ou Tô tentando escrever um ensaio sobre o método de Benjamin. O anotador vira estudioso da anotação: o óbvio e o obtuso, amigos para sempre, se resolvendo em dissolução gozosa recíproca enquanto ele almeja algo que se assemelhe à saída do evidente e ao fim momentâneo da burrice, nem que seja pela visitação obstinada da inteligência alheia.

Estava, assim, às voltas com o Caderno N, o famoso momento epistemológico de Benjamin no trabalho das Passagens, uma coletânea de protocolos táticos, de instruções a perseguir, de dicas de procedimento que Benjamin escrevia como quem escreve lembretes a si mesmo. É notável o desvio que essas observações tem à medida que uma certa prestação de contas com o Marxismo se torna mais frequente: a intensidade sinuosa do início do caderno cede a uma pressão externa que torna a escrita mais arrevesada e poliédrica, mas ao final dos escritos a máquina delirante está a todo vapor, celebrando o próprio naufrágio com comentários tão voluptuosos que fazem uma menção a Sainte-Beuve parecer um grande juízo de propriedade anacrônica, quando o que está disposto ali tem apenas um indício em Sainte-Beuve. É a inteligência de Benjamin que o impressiona, é Benjamin escravo de seu próprio pensamento, chaga e profecia, ferida que lambe em eloquência, em uma sala na Biblioteca de Paris, em um minuto de silêncio na escrita de mais uma ficha em que olha pela vidraça para Paris e uma refração demonstra todos os tempos que consumam seu interesse em um átimo, tudo fugidio e incapturável, tudo morrendo e uma sinfonia de estertores que clama dos livros e da rua distrai Benjamin, o roubou de suas notas por um momento, até que ele voltasse o rosto para a mesa, o livro, o caderno, a ficha, a nota. Ora presunçosa, ora escolástica; Eu amava tudo aquilo que é falho; Assim como Proust; Assim como a folha; Despertar:  como ficar imune a essas palavras? Como tratar esse negócio como matéria de exegese no século XXI sem ceder à estupidez grotesca do esforço de didatização nem ao voluntarismo arrivista do uso? Puta merda, pensa – e, dessa vez, quem se distrai é ele, recordando um incidente ocorrido há alguns dias que o contaminou e perturbou muito e até agora está aqui, interferindo em seu estudo, em sua leitura, sequestrando o momento passado com Benjamin. No decorrer de uma avaliação final de doutorado, uma professora adentra a sala de defesa e, na audiência, começa a conversar com uma aluna. As conversações perduram, a professora ri. O doutorando hesita, em seu transe semi-apoplético, na exposição: não sabe também o que fazer, parece admirar a professora que fala sem cessar, histericamente, e ri, enquanto apenas a aluna dirige seu olhar à mesa onde se senta a banca, como uma criança que convoca os adultos na hora da traquinagem, como alguém que erra com consciência de que está cortejando a admoestação. Não é uma grande defesa, em hipótese alguma: é um exercício no qual o que tropeça no texto examinado se traduz em titubeio e insistência e reiteração, mas nunca em revelações de improviso que carregam a força dos anos de estudo para uma incandescência da hora, propiciada pelo exame, convidada pela arguição. É, em todos os sentidos, um evento morno, assim como é morno e protocolar seu desempenho, seus comentários atenuados, seu tédio. Mas há algo no comportamento da professora que conversa na audiência que parece sal na ferida, e há algo também no orientador, que preside a mesa, e que hesita e parece temer fazer uso de uma assertividade que a situação, imagina, solicita.

Que desrespeito!, pensa, indignado. O que essa mulher está pensando? Onde essas pessoas estão com a cabeça? Tem vergonha de seus alunos, presentes, observando o descalabro, e lamenta, lamenta, lamenta mas, por mais que lamente, efetivamente não sabe o que essas pessoas estão pensando, estavam pensando, estarão pensando. Sabe, todavia, que uma espécie particular de miséria o tragou ali, e lê repetidas vezes as repetidas vezes em que Benjamin escreve, como conclusão de uma anotação, Despertar, e lembra, por causa disso, de um trecho do Rua de mão única, que se dá ao trabalho de consultar, e que vê na consulta que estava bem lembrado, que se lembrava do trecho quase certo:

Todas as manhãs o dia está aí, como uma camisa lavada em cima da nossa cama; esse tecido incomparavelmente fino e incomparavelmente resistente cai como uma luva. A felicidade das próximas vinte e quatro horas depende da gente saber ou não agarrar esse tecido na hora de acordar.

Imagem

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s