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Ganhando meu pão – 1

Uma vez que não acredito que nascemos com nada e que tudo que temos é fruto dos acidentes da socialização, é por força de uma massa de contribuições contingentes que virei professor. Em certa medida as razões se perdem, mas é inegável o papel de Ao mestre com carinho, assistido em casa, por recomendação de meu pai, fã de Sidney Poitier e, em geral, tenho que registrar o valor dos filmes americanos de professor nesse negócio, pois foram esses filmes que deram as cartas primeiro e, depois, os cinco ou seis professores que tive e que até hoje funcionam como modelos morais para mim, e talvez alguma noção difusa de mérito e respeitabilidade associada ao negócio: por acreditar que alguns professores que tive eram “respeitáveis” porque tinham “mérito”, achei que a coisa era boa.  Claro, também resumo o assunto dizendo que “Escolhi”.

Estou, agora, há algumas horas manobrando textos de meus alunos. Anseio pela emergência de um “simultaneamente”, ou de uma analogia entre o tema e um bulbo, vegetal ou elétrico; pela correlação insólita à beira do dadaísmo, mas que me levará a ver algo subitamente, ou pensar que vejo; por um arremate de frase que, conquanto simples, franco, sem firulas, me levará a pensar um negócio que nunca pensei nem poderia pensar antes. Esses lances, que estão provavelmente também na raiz da suposta escolha por esse ofício, que são parte do que justifica, para mim, esse trabalho, se ocultam sistematicamente, se recusam a emergir da massa de textos que é minha função comentar.

Quem se engana? Paro de me perguntar essas coisas, olho o maço de papel à minha frente, e lembro por um momento de meu personagem favorito em 2666, Amalfitano. Professor de filosofia de Barcelona lançado no sertão do México, ensinando na Universidad Autónoma de Ciudad Juarez, Amalfitano aproveita enquanto seus alunos trabalham nas tarefas acadêmicas para desenhar mil diagramas de relacionamento entre os nomes da filosofia ocidental; são matéria de delírio, mas há também um esclarecimento do delírio, uma exibição de algo inaudito e nu, que se constrói não por qualquer antecipação especulativa, mas sim por força de um motor invisível, de cuja existência só temos os efeitos. Por delirantes que sejam os diagramas, não são mais delirantes do que filosofia em Chihuahua, Heráclito diante dos cactos e das maquiladoras. Alguns dias depois esse personagem magnífico, quieto e um pouco melancólico mas muito, muito terno, pendura no varal um tratado de geometria, para que o livro aprenda algo com os vagares da natureza. Quem se engana?, pergunta Amalfitano. Quem se engana?

aula

  1. Amalfitano na parte 1 = maior monólogo da história. Justifica o desejo de qualquer um de catar a obra inteira do Bôla.

  2. Pingback: Time flies « ensaio

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