Lembro de uma vez conversar com um amigo classicista que já era professor na época em que eu era ainda um pseudocandidato ao posto; é um amigo querido com quem há muitos anos não converso, ele foi morar em Estraburgo, eu fui pros Estados Unidos, eu me casei e me separei, ele também – enfim, a vida deu uma daquelas torcidas que terminam convidando o afastamento a não ser que a gente resista à manifestação da lei da entropia nas relações humanas.
Um dia ele me disse como gostava desse trabalho, como era bom lidar com gente jovem, e como era boa a mudança dos semestres, como era bom ver as pessoas aparecendo na graduação, demonstrando interesse por alguma coisa e avançando, e aparecendo no mestrado, e caminhando na vida, e construindo alguma coisa nesse negócio que a gente chama de vida acadêmica.
Ele, claro, dourou a pílula, mas era uma percepção genuína. Lembrei dele hoje: estava exausto, e eram apenas dez e meia da manhã. Você vê um professor universitário em início de carreira e não faz idéia da carga de trabalho envolvida no negócio. Há, claro, pares lenientes, atire a primeira pedra quem não os tem, que fazem da estabilidade e dos acolchoados ligados ao espírito da guilda a infâmia do ofício. Mas há muito mais que isso – ou você achava que se resumia a isso, e que estava coberto de razão quando demonizava a academia inteira? – e, no meio das mil coisas que fazem esse ganha pão, há muito que nutre o interesse, multiplica o empenho, mantém a atenção presente e estimula o desejo de elevar e honrar o ofício.
Assim, hoje, quando no meio de meus afazeres lá com o Túlio, o Juan bateu na porta e nos interrompeu para me dar um pacote de Jorgito, lamentei não ter tempo de dar atenção a ele, lamentei quanto tempo faz que não conversamos. Mas não lamentei fazer as coisas que fiz pra que um dia eu tivesse sido professor do Juan e, por acaso, no intervalo de uma das aulas, na época em que eu ainda fumava, tivéssemos fumado juntos no corredor, e falado de Aira e de Adán Buenosayres, que dali a uns anos ele me daria de presente naquela edição linda da Archivos, e aquela vez em que falamos de outras coisas da vida e eu disse pra ele que precisava parar de fumar, e nos perguntamos se César Aira fumava, Saer com certeza fumava e não era pouco, e você não acha que Saer se refletia mesmo era em Tomatis, tipo fazia daquele personagem em particular seu alter ego? Não? E, com essas coisas todas na cabeça, terminei desistindo do post que planejei fazer hoje, no qual falaria do chute no saco que são as resenhas de Bolaño nas quais ele enche a bola de todo mundo, mas especialmente a dos amigos dele, que grande aborrecimento ver aquela ladainha de loas, aquele desfile de magníficos, ninguém que jamais tenha levado porrada, e falaria também de um texto sobre o valor do não na crítica que li hoje ligando isso à prática de Bolaño como comentador de literatura, e de alguma maneira ia enfiar também aquele incidente grotesco de quando Bolaño já autor celebrado foi ao Chile e depois saiu escrevendo textos nos quais jogava todo mundo que encontrou na fogueira, uma vingança verbal tardia que termina sendo uma espécie de homenagem aos escrotos, e talvez falasse sobre aquele texto que planejo há tanto tempo, sobre a articulação entre escrotos e fudidos na poética de Bolaño e, claro, em algum momento comentaria também sobre o bruto labor que às vezes é produzir um comentário sobre um livro para, no final, pensar em Bolaño passeando na praia, um pouco cansado, está meio abatido, cumprimenta uma senhora sua vizinha, dia de muito trabalho no livro, saiu do escritório e foi dar um passeio na praia, a marina cheia de barcos, e ele vê os barcos soçobrando um pouquinho e se pergunta se isso está certo, se você julga que isso está certo, se você acha que a vida é assim mesmo do jeito que você pensa que é.
“…e falaria também de um texto sobre o valor do /sempre/ na /amizade/ que li hoje ligando isso à prática…”
un abraço,
Juan, amigo, sei que vc estará lá como os personagens do início do livro de Marechal, carregando uma alça do meu caixão. 🙂
“Saer com certeza fumava e não era pouco, e você não acha que Saer se refletia mesmo era em Tomatis, tipo fazia daquele personagem em particular seu alter ego? Não?” Sim. Sim?! Quando eu crescer vou fumar, nos corredores? Não. Nos bares, com aquela ar charmoso das mulheres francesas, um ar autoritário, despreocupado com a vida, um ar fingido de quem sofre versos em guardanapos de papel.